sexta-feira, 8 de março de 2013

ENTREVISTA REVISTA PLAYBOY: QUENTIN TARANTINO


Uma conversa franca com o diretor rebelde sobre por que, quanto mais sangue, melhor, o barato de reinventar a história e como ele quer que sua carreira termine

Michael Fleming
05/02/2013

A primeira vez que a PLAYBOY entrevistou Quentin Tarantino foi em 2003, por ocasião do lançamento de Kill Bill. Haviam se passado seis anos desde seu último filme, Jackie Brown, e uma pergunta parecia inevitável: será que o diretor que tinha quebrado todas as regras, gerado uma legião de imitadores e subvertido os filmes de gângsteres com Cães de Aluguel e o vencedor do Oscar Pulp Fiction conseguiria manter o pique?

A dúvida se esvaiu no momento em que Uma Turman começou a retalhar e mutilar seus oponentes, trilhando o caminho rumo à vingança. Sim, Tarantino havia conseguido. Dez anos depois, ninguém mais questiona seu poder de permanência. Sua fórmula inconfundível: reinventar gêneros estabelecidos, despejar seu conhecimento enciclopédico sobre cinema, escrever diálogos que atraem grandes estrelas e injetar sua sensibilidade única e sua visão torta do mundo em eventos aparentemente previsíveis. O resultado é uma mistura original que o transformou em um dos poucos diretores cujo nome ainda significa alguma coisa nas bilheterias. Com acordos que lhe dão direito à montagem final, uma grande porcentagem da arrecadação e o tipo de autonomia que a maioria dos diretores nem sequer imagina, Tarantino tem criado as próprias regras. Com exceção de Grindhouse – a homenagem aos filmes B que ele fez com seu colaborador em Um Drink no Inferno, Robert Rodriguez –, todos os filmes de Tarantino fizeram dinheiro.

Depois de Kill Bill, Tarantino até reescreveu a história, matando Hitler e seus cupinchas do Terceiro Reich em Bastardos Inglórios, uma fantasia violenta de realização de desejos. O filme arrebanhou oito indicações ao Oscar (e uma estatueta de melhor ator coadjuvante para Christoph Waltz) e se tornou o trabalho mais bem-sucedido de Tarantino até o momento, com 321 milhões de dólares de bilheteria no mundo todo. Agora ele está de volta com Django Livre. Se Bastardos Inglórios começou como um filme de guerra ao estilo Os Doze Condenados, desta vez Tarantino partiu da ideia de escrever um western spaghetti. Só que colocou a ação no Sul dos Estados Unidos antes da Guerra da Secessão e escolheu como protagonista um escravo (Jamie Foxx) libertado por um dentista caçador de recompensas (Waltz), que lhe ensina o trabalho nesse ramo. Django está em rota de colisão com um latifundiário (Leonardo DiCaprio) que entregou sua mulher, Broomhilda (Kerry Washington), à servidão sexual. A apresentação de escravas forçadas a manter relações com seus senhores e de homens que se enfrentam em brigas brutais até a morte deu o que falar, mas sutileza nunca foi o forte de Tarantino.

Enviamos o jornalista e escritor americano Michael Fleming (que conduziu a Entrevista de 2003 com Tarantino) para encarar o diretor-roteirista. O relato de Fleming: “Quentin, hoje com 49 anos, certamente amadureceu muito desde os tempos em que contava histórias histriônicas sobre pancadarias com taxistas e de como tomou ecstasy na Grande Muralha da China enquanto filmava Kill Bill. Nós nos encontramos em sua casa no alto das colinas de Los Angeles, uma mansão com uma bela vista para o Vale. A primeira coisa que notei quando entrava foi o escandalosamente colorido Pussy Wagon, o Chevy Silverado SS amarelo que Uma Turman dirige em Kill Bill. Acima dele havia uma placa de drive-in, parte do cenário de Grindhouse. A casa é cheia de itens cinematográficos. Pôsteres de filmes inusitados – Children Shouldn’t Play with Dead Things [Crianças Não Deveriam Brincar Com Coisas Mortas, uma comédia de horror de 1973], por exemplo – cobrem todas as paredes. Acho que também entrevi um par de mãos verdes gigantes do Hulk num canto… Dá para perceber que Tarantino é um cara solteiro que pode se esbaldar em seu apetite voraz por tudo o que diz respeito a cinema – porque nenhuma esposa aguentaria aquilo”.

Aquele lá fora é o Pussy Wagon de verdade, o carro em que a Noiva chega em Kill Bill?
É claro.

Você o dirige mesmo?
Não muito nos últimos tempos. Ele ficou meio ferrado porque eu passava um tempão dentro dele quando não estava filmando. A gente o deixou bonitinho de novo.

Provavelmente não é o melhor carro para Quentin Tarantino dirigir se a ideia for discrição.
Não, mas às vezes é divertido dar um rolê com as janelas abertas. Você vai de ponta a ponta da Malibu Drive [uma das principais avenidas de Los Angeles], e todo mundo fica naquela: “Caramba, é o Quentin!” É um barato…

Você matou Hitler em Bastardos Inglórios, com soldados judeus escalpelando nazistas. Django Livre traz um escravo liberto, transformado em caçador de recompensas, que vai para cima dos donos de escravos que transformaram sua mulher em prostituta. Você não estaria fazendo versões mais criativas, montando fábulas históricas revisionistas que permitem às vítimas de acontecimentos horrendos se erguer e dar o troco?
Se é mais criativo ou não, está nos olhos de quem vê, mas é isso o que estou fazendo. Em parte porque é o que eu gostaria de ver. Você põe um filme para assistir e sabe como as coisas vão acontecer na maioria das vezes. Mas de vez em quando surge um que não segue as regras. É libertador quando você não sabe o que vai acontecer em seguida. A maioria dos filmes que conseguiram isso foi de forma acidental, como se dessem de cara com algo quenão tinham pensado direito no começo. Mas, naquele instante do filme, o efeito é libertador. Eu pensei: “E se a gente contasse essas histórias do meu jeito, duro, cru, mas gratificante no final?”

Que filme despertou a ideia?
No caso de Bastardos Inglórios, houve um filme feito em 1942, Hitler Dead or Alive [Hitler – Vivo ou Morto]. Foi logo quando os Estados Unidos entraram na guerra. Um cara rico oferece uma recompensa de 1 milhão de dólares pela vida de Hitler. Três gângsteres aparecem com um plano para matar o cara. Eles saltam de paraquedas em Berlim e abrem caminho até ele. É um filme destrambelhado, que começa sério e fica muito engraçado. Os gângsteres pegam Hitler e, quando começam a descer a porrada nele, a coisa fica um barato. Eles raspam o bigodinho dele, cortam aquela mecha de cabelo, tiram a farda do cara, de modo que ele fica parecendo um sujeito normal. Então os nazistas aparecem, e Hitler, que já não se parece mais com Hitler, fica naquela: “Ei, ei, sou eu!” E os nazistas descem a porrada nele. Eu pensei: “Caramba, isso é histérico de tão bom!”

Quando os espectadores chegam ao fim de Bastardos Inglórios, a reação comum é: “Peraí, mas será que o Tarantino pode mudar a história desse jeito?”
Esse não foi o ponto de partida do filme. A ideia não me ocorreu até pouco antes de começar o roteiro. Eu tinha escrito o dia inteiro e estava meditando sobre como seria o trabalho no dia seguinte. Estava ouvindo música, andando pra lá e pra cá, até que peguei uma caneta e uma folha de papel e escrevi: “É só matar aquele merda!” Deixei aquilo na cabeceira da cama para ver quando acordasse na manhã seguinte para poder decidir depois de uma noite de sono se ainda era uma boa ideia. Acordei, vi o papel, andei pra lá e pra cá mais um pouco e disse: “É, é uma boa ideia”. Saí para a varanda e comecei a escrever. E matei aquele merda [risos].

Você também misturou história com ficção em Django Livre. Chegou a estudar filmes ou livros para capturar a vida no Sul Profundo antes da Guerra Civil?
Talvez fosse uma boa ideia assistir a filmes de Segunda Guerra, nem que fosse para aprender os clichês que ajudam você a contar uma história dando ao público o que ele está acostumado a ver. Só existe um punhado de filmes de escravidão de verdade. Para mim, esse filme é um western, só que passado no Sul Profundo. O que me interessava, em termos de escravidão, era o aspecto empresarial. Humanos como gado, como aquilo funcionava? Quanto custava? Quantos escravos uma pessoa comum tinha no Mississipi? Como as casas de leilão operavam? Quais eram as camadas sociais dentro de um latifúndio?

O que você quer dizer?
No caso de Django Livre, o personagem de Leonardo DiCaprio, Calvin Candie, é um latifundiário que tem 170 quilômetros quadrados de terra. Ele é como o Bem Cartwright de Bonanza, só que, no Sul, mais um entre um punhado de famílias algodoeiras no Mississipi. Qualquer um nessa posição é como um rei em seu próprio reino. Todos os brancos pobres que trabalham para eles e todos os escravos são seus súditos; eles são donos de tudo até onde a vista alcança, e o latifúndio é completamente autônomo como entidade econômica e lucrativa. Candie nasceu no meio disso, o que significa que ele não tem de se preocupar um peido com o negócio: a coisa inteira funciona sozinha. É uma perversão bizarra da aristocracia europeia. Essa foi uma perspectiva fascinante para aplicar na história toda e para o modo como Candie escolhe passar o tempo.

No filme, escravas são estupradas e homens lutam entre si como pitbulls. Quando você fez Jackie Brown e Pulp Fiction, foi criticado pelo uso abundante da palavra nigger [algo como “crioulo”, a palavra é considerada extremamente ofensiva pelos afro-americanos]. Esse filme também está recheado dela. Acha que está se sentando num barril de pólvora?
Hoje eu me imagino sentado num barril de dinamite, como num desenho do Looney Tunes. Resta saber no que vai dar, eu acho. Se acontecer, não é porque estou tentando botar fogo em nada. Só estou contando a minha história da forma que escolhi numa estrutura de western spaghetti, sublinhando as qualidades surreais inerentes ao material, mítica e operisticamente, e em termos de violência e horror, com um humor negríssimo. Tudo isso é parte do gênero western spaghetti, mas eu estou fazendo o filme sobre um trecho da história que não poderia ser mais surreal, bizarro ou perversamente cômico quando visto de um certo ângulo. Essas coisas andam de mãos dadas.

Mas a ideia de mostrar aquelas escravas como prostitutas…
Bom, elas não são 100% prostitutas… O Cleopatra Club do filme não é um bordel. É um clube de cavalheiros, um lugar no estilo “traga a sua garrafa”. Só que lá o esquema é “traga o seu pônei e pode jantar com ele”.

“Pônei” é o termo para escravas jovens e atraentes? É. E isso existiu mesmo?
Claro, nenhuma dúvida. Acho que é a base da escravidão ou, pelo menos, uma das coisas que a fizeram funcionar. Além da força de trabalho, era o sexo num estalar de dedos. No momento em que as pessoas possuem outras pessoas, todos nós sabemos que, definitivamente, isso faz parte do negócio. Eles faziam isso naquela época? Sim, faziam. Estão fazendo neste exato momento. É só ir até Bangcoc. O lance do Cleopatra Club é que, se você gostar da sua escrava, pode levá-la até lá. Pode jantar com ela. Se misturar. Se você só quiser levar o seu pônei e passar uma noite trepando na cidade, tudo bem, também pode. Mas talvez você ame a garota de verdade, talvez ela seja tipo uma esposa de fato. E essa era uma forma de levá-la para sair um pouco, lhe dar um pouco de diversão.

Você originalmente queria Will Smith para o papel de Django. Chegou muito perto de consegui-lo?
Passamos algumas horas juntos num fim de semana quando ele estava em Nova York fazendo Homens de Preto 3. Demos uma lida no roteiro e trocamos algumas ideias. Eu me diverti bastante; ele é um cara esperto, bacana. Acho que metade daquilo foi só uma desculpa para sairmos e passarmos algum tempo juntos. Eu tinha acabado de finalizar o texto. Foi bacana falar com alguém que não fica na defensiva.

O que ele tinha a dizer?
Isso é coisa nossa, entre mim e ele, mas nada de negativo.

Ele tem de avaliar material em parte devido ao seu status, provavelmente o maior astro do mundo e, certamente, o maior astro afro-americano.
É, eu sei. Mas ele não pulou fora porque ficou assustado com o material.

Por que então?
Simplesmente porque não estava 100% ajustado e nós não tínhamos tempo para tentar ajustar. Quando nos despedimos, eu disse: “Olha, eu vou ver outras pessoas e tal…” Ele respondeu: “Deixa eu ver como me sinto e, se você não achar ninguém, vamos conversar de novo”. E aí eu achei o cara.

Por que Jamie Foxx?
Por um monte de motivos, mas o motivo gigantesco é que ele era o caubói. Conversei com seis atores diferentes, tive reuniões extensas com todos e me aprofundei bastante no trabalho deles.

Quem?
Idris Elba. Também me encontrei com Chris Tucker, Terrence Howard, M.K. Williams.

Williams, de A Escuta e O Império do Contrabando?
É. Falei com Tyrese [Tyrese Gibson, rapper e ator]. Todos gostaram do material, e eu ia botá-los à prova, colocar um contra o outro, meio que montar uma corrida de obstáculos. E aí encontrei Jamie e compreendi que não precisava mais fazer aquilo. Jamie entendeu o material. Mas, principalmente, ele era o caubói. Esqueça o fato de que ele tem seu próprio cavalo. Que, aliás, é o que aparece no filme. Ele é do Texas, ele entende. Nós ficamos ali, conversando, e eu percebi que, uau!, se a gente estivesse nos anos 1960 e eu estivesse escalando um seriado chamado Django e houvesse astros negros naquela época, eu podia ver Jamie lá. E era isso que eu estava procurando, um Clint Eastwood.

Quando a PLAYBOY entrevistou Foxx, ele falou sobre como foi crescer no Texas. Mesmo sendo uma estrela do time de futebol, era constantemente chamado por termos racistas e maltratado. Como isso influenciou a atuação dele?
Ele entendia o que é ser encarado como um “outro”. Mesmo estando no time de futebol, mesmo sendo um dos astros, quando ele saía com a garota bonita da escola, todo mundo perdia a cabeça. Ele entendia como é ser contratado como pianista em uma festa de brancos texana. Quando você é o pianista negro no coquetel, você é parte da mobília. Não conversa com ninguém. Ninguém fala com você. Não esperam nem mesmo que pensem em você. A galera diz o que quer, você é só um móvel.

Para eles poderem dizer algo racista se quisessem.
E diziam mesmo.

E você é invisível.
Exato. Ele me contou histórias sobre como a dona da casa pagava dizendo: “Olha, desculpe pelas coisas que alguns convidados do meu marido disseram. Eles não estavam falando sério. Toma aqui um dinheirinho”. Também contou que, uma vez, apareceu numa casa para tocar e o pessoal disse: “Ora, ora, mas você precisa de um paletó para entrar aqui…” Ele respondeu: “Bom, eu teria trazido um, mas ninguém me avisou”. E os caras: “O.k., a gente tem um sobrando aqui. Vamos pegar pra você”. Deram o paletó, ele fez o que tinha de fazer e, quando já estava pronto para sair, foi até o sujeito dizendo: “Bom, aqui está o seu paletó”. E o cara: “Ah, bicho, o paletó é seu agora. Eu não quero mais esse paletó”. Disseram na cara dele.

Como você age quando os atores querem mudar o material?
Bom, alguém pode vir mesmo com uma boa ideia, tipo: “Ei, e se acontecesse isso agora?” E às vezes eu respondo: “Uau, essa ideia é boa mesmo! Me deixa pensar um pouco”. Muita gente já me deu boas ideias. Mas não sou do tipo que passa uma cópia do roteiro para todo mundo e sai recolhendo as impressões da galera. Recolho comentários na montagem do filme, mas, se as pessoas tiverem algum problema com o roteiro, provavelmente não vamos fazer o filme juntos. Os estúdios que fizeram Django também fizeram Bastardos Inglórios, e todo mundo ficou feliz. Não tive um único problema com todas aquelas legendas no filme. Ninguém disse: “Será que não podíamos tentar em inglês?” Simplesmente sabiam que isso não estava em questão. O modo como as coisas funcionam comigo desde o começo é “está tudo no roteiro”. Posso mudar uma coisa ou outra, mas, se você leu o roteiro e gostou, provavelmente vai gostar do filme.

Quando alguém roda um filme de escravos no Sul Profundo, como a comunidade reage?
Sociologicamente, uma das coisas mais interessantes aconteceu quando estávamos no latifúndio do personagem de Don Johnson, Bennet Manor. Ele tem algodoais ali e tem apanhadores de algodão, garotas, homens, crianças, velhos. Mas também tem “pôneis” e é um dos que vendem garotas bonitas. É seu grande ativo: ele é um cafetão dos algodoais, e as pessoas vêm de longe até sua propriedade para comprar as garotas. Estávamos com um monte de figurantes da comunidade de St. John the Baptist. Foi bacana recriar essa história com figurantes negros do Sul cujas famílias sempre viveram lá. Eles sabiam o que rolava na época. E aí houve um problema de divisão social entre os figurantes que espelhava os problemas entre seus personagens no filme. As pôneis eram bonitas e olhavam de cima para baixo os figurantes que faziam os apanhadores de algodão. Achavam que eram melhores do que eles. E as pessoas que faziam os domésticos olhavam de cima para baixo as pessoas que faziam os apanhadores. E os apanhadores achavam que as pessoas que faziam os domésticos e as pôneis eram uns babacas de nariz empinado. E houve uma quarta subdivisão, entre os de pele mais escura e os de pele mais clara. Óbvio que não acontecia com todo mundo e não chegou a ser um problema gigantesco, mas era uma coisa que dava para perceber. Eles começaram a espelhar as situações sociais de seus personagens só de ficar naquela propriedade por algumas semanas…

E os brancos locais? Ficaram ressentidos?
Bom, francamente, não havia tantos brancos assim na área do nosso set. Nós tínhamos uma equipe local, óbvio, mas não havia motivo para brancos ficarem zanzando por ali.

Leonardo DiCaprio foi inicialmente cogitado para o personagem de Hans Landa, que deu a Christoph Waltz um prêmio da Academia por Bastardos Inglórios. DiCaprio é o seu novo vilão agora.
Na verdade, Leo e eu nunca nos encontramos para falar sobre Bastardos Inglórios. Ele estava curioso sobre o papel, mas eu sabia que precisava de alguém com todas aquelas habilidades linguísticas. Na verdade Leo fala um alemão muito bom, mas no filme Landa falava mais francês do que alemão. Então Leo nunca esteve na parada. Ele e eu temos saído juntos por uns 15 anos. Leo gosta do meu texto e sempre dá um jeito de conseguir uma cópia dos roteiros que eu termino para ver se encontra algo que pode dar certo. Ele pegou esse roteiro e gostou muito de Calvin Candie.

Ele ligou para você?
É.

Quando você escreveu Candie, tinha alguém em mente?
Tinha, mas não quero dizer nomes simplesmente porque, quando terminei o roteiro, compreendi que eles eram um pouco mais velhos do que eu queria que o personagem fosse. Esse é um problema que eu tenho: penso em algumas pessoas e não levo em conta que estou pensando neles há 20 anos. Leo era mais novo do que eu tinha escrito inicialmente para o papel, mas dei uma lida de novo e nãoconsegui achar nenhum motivo para o personagem não ser mais jovem. E, como estou batendo forte nessa ideia de um americano sulista recriando a aristocracia europeia de um jeito amador e esculhambado, a ideia de tê-lo como um imperador-menino foi bacana. Seu pai era um produtor de algodão, o pai de seu pai era produtor de algodão, e assim por diante. Logo, Candie não tem de fazer nada, está tudo arranjado, e ele pode ser o patrão petulante com outros interesses. Sua paixão não é o algodão. São as lutas de escravos.

Um clássico vilão de Tarantino?
É o primeiro vilão que escrevi de que não gostei. Odiei Candie, e normalmente gosto dos meus vilões, não importa quão maus eles sejam. Consigo ver as coisas do ponto de vista deles. Consegui ver com os olhos de Candie, mas odiei muito aquilo tudo. Pela primeira vez como escritor simplesmente odiei esse filho da puta.

Por quê?
Ele é um mestre da instituição da escravatura, e meu desprezo por isso foi a razão de eu escrever essa coisa toda. Ele é a fundação, a base daquilo tudo. Eu pensei: “Uau, consegui o Leo, e ele não sabe que esse personagem é só um jogo de fumaça e espelhos, não tão bom quanto os outros papéis…” Mas, trabalhando com Leo, acabamos fazendo o personagem ficar tão bom quanto os outros. A ideia toda do imperadormenino se consolidou em oposição à ideia do latifundiário mais velhão. Leo formou um novo personagem e foi bem direto sobre o que queria. Assim como eu tenho uma intenção quanto à história que quero transmitir nesse filme, ele também tem e trouxe toda uma pesquisa para o personagem. Leo tinha um belo monólogo que falava sobre como tinha sido ser garoto, ter um pai que fazia o que fazia e crescer cercado por rostos negros. Como ele poderia ser diferente? Nasceu no meio daquilo. Será que um príncipe vai negar seu trono, seu reino? Eu o culpo mesmo assim, mas que chances ele tinha?

Você cria vilões incríveis. Quem estabeleceu o melhor padrão de vilania para você?
Lee Van Cleef é um dos meus atores favoritos. Eu o adoro em Três Homens em Conflito.

O que faz um bom malvado?
Você pode pensar em um filme como A Lista de Schindler, e lá está Ralph Fiennes. E há também Onde os Fracos Não Têm Vez e Javier Bardem. E Bastardos Inglórios e Christoph Waltz. A última vez em que assisti a um filme comum, de gênero, em que o vilão me deixou alucinado, foi com Alan Rickman em Duro de Matar. Foi o jeito como ele tomou conta do filme. É realmente divertido escrever personagens como aquele. Mas o que sempre estou tentando, mesmo no caso de Cães de Aluguel, é fazer vocês meio que gostarem desses caras, apesar das evidências, ali na tela, de que não deviam. Apesar das coisas que eles fazem e dizem, apesar das intenções deles. Também gosto de fazer a galera rir dessas merdas doentias.

Na última vez em que foi entrevistado pela PLAYBOY, você descreveu as cartas que recebia de mulheres com propostas, fotos e tudo mais. Como anda o correio ultimamente?
Se eu estou em um festival de cinema, dando uma volta pela cidade ou em um bar, dá para passar uma cantada numa garota e a coisa ainda rola numa boa. Não me preocupo mais com o correio. Quando estive no Festival de Veneza e fui presidente do júri, não conseguia fazer nada porque todo mundo sabia que eu estava lá. Você vai até o bar, onde sempre foi bacana beber com outros membros do júri, mas era um tal de botar gente pra fora que não parava mais.

Você tomou ecstasy na Grande Muralha para relaxar enquanto fazia Kill Bill. Quando está rodando um drama tenso sobre escravidão no Sul Profundo, como faz para se soltar?
Esse filme foi muito difícil. Pensei nele em termos de Kill Bill e disse a mim mesmo: “O.k., não vou cair na gandaia como fiz no outro”. Tínhamos os fins de semana livres, e às vezes eu me pegava dormindo o sábado inteiro e, quem sabe, de vez em quando, saía para jantar.

Você contou ao [apresentador e locutor] Howard Stern que Brad Pitt cortou uma fatia de um tijolo de haxixe enquanto estavam conversando sobre Bastardos Inglórios. Que tipo de problemas você teve com Brad ou com Angelina Jolie?
Ah, não, naquela época foi tranquilo. Foi o Brad que começou essa merda. Ele mencionou a história em uma coletiva. Eu tinha mencionado a coisa antes, mas ele oficializou. Talvez ele não ache que começou oficialmente, mas começou, sim. Mas não teve grilo. Apareceu em um zilhão de sites: “Quentin deixa Brad doidão para dizer sim a Bastardos”. E mais 996 artigos relacionados [risos].

As drogas têm um impacto positivo no seu processo criativo enquanto está escrevendo ou dirigindo?
Hummm, não. Eu não faria nada doidão enquanto estivesse criando um filme. Não costumo escrever doidão, mas, digamos que você esteja pensando numa sequência musical. Você acende uma ponta, põe alguma música para tocar, começa a escutar, e aparecem umas boas ideias. Ou então você está relaxando no fim do dia e fuma um pouco de erva e, de repente, está tecendo uma teia ao redor do que acabou de fazer. Talvez apareçam boas ideias. Talvez elas só pareçam boas ideias porque você está chapado. Mas você anota para dar uma olhada no dia seguinte. Às vezes é bom pra cacete. Eu não preciso de erva para escrever, mas é bacaninha. Fazer esse filme foi difícil pra caramba. O fim de semana chegava, e tudo o que eu queria fazer era fumar pra bundar um pouco. Simplesmente desligar. Minha libertação em Django sempre foi sexta-feira à noite. Em Nova Orleans, eu e a equipe íamos a algum bar. Ficávamos na rua até 6 ou 7 da manhã e depois dormíamos o dia inteiro. Nós nos recuperávamos no domingo, às vezes assistíamos a um filme e estávamos de volta ao trabalho na segunda.

Você vai fazer 50 anos neste ano. Pensa em se casar e ter filhos?
Veremos. Eu tive alguns casos que quase funcionaram, cheguei a pensar que me casaria e teria filhos. Não sou mais necessariamente contra. Estava a fim, mas depois superei. Tive um pouco de “bebezite” por um tempo, mas superei.

Chegou a passar algum tempo com uma criança?
Não, não, não. O filme que estou fazendo é o meu bebê. Mas estou num momento aberto da minha vida neste exato momento e estou meio interessado em ver o que vai rolar daqui pra frente.

Algo disso tem a ver com estar prestes a fazer 50?
Acho que não porque não penso sobre isso dessa maneira. Acho que você é a primeira pessoa que fica mencionando que eu vou fazer 50… [Risos.] É, ainda estou me agarrando aos 49. Ainda tenho um tempinho. Toda essa história de 50 anos de idade é maldade…

Isso irrita você?
É. [Risos.] Eu estaria aberto hoje a encontrar uma garota legal, me dar bem com ela, dar o primeiro passo e, se for bom, dar mais um passo. E vamos ver o que rola.

Você não vai ser um daqueles caras de 65 que correm atrás das crianças pela casa, vai?
Francamente, eu não teria problema nenhum com isso. Quer dizer, um pouco do meu ego gostaria de ser mais jovem quando eu tiver filhos, mas os porras dos filhos não estão nem aí. E tem aquele outro aspecto, que é ser mais velho hoje e ter mais tempo para eles. Você já não tem nada melhor para fazer. A criança não liga.

Qual é a coisa mais atraente em uma vida de solteiro?
Tenho a liberdade de fazer o que quero. Posso fazer do meu dia o que bem entender. Pessoas com famílias têm responsabilidades para com elas. Mas tenho certeza de que há aspectos negativos no meu estilo de vida boêmio, é claro.

Como o quê?
Não sei. Só estou falando um monte de chavões.

Não consegue pensar em nada, não é?
É. Se eu tivesse uma esposa, provavelmente seria mais educado. Ela me faria escrever notas de agradecimento. Quando as pessoas fizessem algo legal por mim, ela me faria retribuir, uma nota ou um telefonema, coisas que eu não faço sozinho. [Risos.] Essa seria uma parte boa do acordo. Eu não ia ser este homem das cavernas. Talvez fosse um pouco menos distante. Mas, dito isso, considerando o modo artístico, quase acadêmico, como levo a minha vida quando se trata dos filmes que faço e da pesquisa para eles, tenho me saído muito bem. Se eu quisesse morar em Paris por um ano, e daí? Eu posso. Não tenho de preparar nada; simplesmente posso. Se eu ficar obcecado por um ator ou um diretor e quiser estudar os filmes deles pelos próximos 12 dias, eu posso. A pessoa perfeita para mim seria uma Playmate que gostasse disso tudo.

Bom, elas estão por aí…
Eu sei, e é por isso que digo que não é impossível.

Provavelmente daria para atirar uma pedra da sua janela e acertar uma.
Bom, elas teriam de ser Playmates mesmo… Gostar da coisa. Teriam de achar um festival de filmes de J. Lee Thompson o maior barato.

Como você sabe se as mulheres que encontra estão a fim de Quentin, o cara, e não de Quentin, o diretor? Isso importa?
Bom, eu não sou Quentin, o cara normal. Esperar que a garota goste de mim do jeito como gostaria se eu fosse um encanador ou trabalhasse numa lanchonete não é realista. E por que eu ia querer isso? Parte de mim somos eu e minha vida, e parte de mim somos eu e minha jornada artística. Tudo faz parte.

Isso quer dizer que a mulher tem de ser sua fã?
Não, isso só quer dizer que, se você gosta do meu trabalho ou respeita o que eu faço, é concebível que isso possa ser um elemento de atração se vier a me conhecer. E, se você gostar de mim, se eu for charmoso ou sexy ou qualquer outra coisa que possa te atrair, isso pode ser uma vantagem. Posso sair com uma garota, e outra, e mais outra, mas, se nós vamos tentar ficar juntos e ser namorados, eu e minha vida, eu e minha jornada artística somos parte do trato. E parte da minha vida é a minha jornada artística. A partir de um certo ponto a coisa fica avassaladora quando você está fazendo um filme. E uma garota também precisa ter sua própria vida.

Você ameaçou se aposentar aos 60. Por que fixar uma data?
Quem sabe o que eu vou fazer? Só não quero ser um cineasta velhão. Quero parar em um certo ponto.

Por quê?
Diretores não ficam melhores à medida que envelhecem. Geralmente os piores filmes de suas filmografias são os últimos quatro. Eu sou totalmente dedicado à minha filmografia, e um filme ruim ferra com três bons. Eu não quero aquela comédia horrí vel, nada a ver, na minha filmografia, aquele filme que faz as pessoas pensarem: “Putz, ele ainda acha que tem 20 anos…” Quando os diretores ficam desatualizados, não é nada legal.

Stanley Kubrick era viável nos últimos anos. Scorsese e Spielberg fizeram bons filmes aos 60, e Woody Allen fez Meia-Noite em Paris aos 70. Será que os fãs não vão querer ver o que está na sua cabeça à medida que você se desenvolve como homem?
Talvez. Se eu tiver algo a dizer, vou fazer. Não fiz nenhuma declaração gigantesca e definitiva. Só não quero ser um cineasta velhão. Estou numa jornada que precisa ter um fim. A ideia não é estar sempre tentando mais um trabalho. Mesmo que eu esteja velho e desgastado, ainda ia querer fazer. Eu quero que essa jornada artística tenha um clímax. Quero trabalhar em direção a algo.

Quando um diretor começa a descer a ladeira, isso não tem mais a ver com o fato de ele ficar gordo e satisfeito e perder a pegada ou não ouvir mais as pessoas?
Pode ser, mas também é a idade mesmo. [Risos.] As histórias de diretores em geral não mentem, mas vou me concentrar num único exemplo: eu não tinha pensado em como Tony Scott estava velho até ele bater as botas. E eu o conhecia. E pensei: “Uau, Tony não estava chegando aos 70?!?”

Como diretor, como você vai saber que não é mais capaz?
Bom, acho que é isso que eu estou tentando descobrir.

Você não solta esses seus filmes por aí uma vez por ano. Quantos ainda há dentro de você?
A gente para quando para, mas, num mundo de fantasia, ter dez filmes na minha filmografia seria legal. Já fiz sete. Se o meu sentimento mudar, se me aparecer uma história nova, posso voltar. Mas, se parar com dez, isso seria bacana como declaração artística.

Quando fizemos a nossa última Entrevista…
Eu reli aquela Entrevista não faz muito tempo. Literalmente no dia seguinte alguém me perguntou: “Quer fazer mais uma?” O que foi legal naquela primeira Entrevista foi que você explorou bastante o fato de eu fazer Pulp Fiction e depois voltar com Kill Bill. Será que ele é bom mesmo ou não? E eu pensei: “Bom, se a PLAYBOY voltar, então acho que passei no teste”.

Com certeza você passou no teste. Da última vez você disse que podia se tornar um bom ator se essa fosse a sua prioridade. Por que isso deixou de ser importante para você?
Perdi a vontade. Acho que tive essa ideia numa combinação de duas coisas. Tinha tido uma boa experiência em Um Drink no Inferno e comecei a sair com Mira Sorvino. Ela é atriz, e o pai dela também, o Paul, e eles falam muito sobre atuar. E havia velhos sonhos e desejos de quando eu era um garotinho. Hoje é o oposto. Se eu escrever um papel para mim mesmo, corto até virar um nada. Atores já me disseram que agora, que estou mais calmo, posso fazer um bom trabalho. Mas a verdade é que, quando fiz Kill Bill, eu ia fazer o Pai Mei, e foi tão difícil…

Pai Mei é o professor que Daryl Hannah envenena…
É. Eu ia fazer o papel. Tinha treinado para fazer as lutas e tudo mais, mas o filme era tão grande que precisava de toda a minha atenção na direção. Quando eu tinha terminado, decidi que, se ia estar em um set, queria que fosse o meu set, comigo na direção. Não quero ser ator no filme dos outros. Não quero gente mandando faxes para a minha casa e não quero me levantar de manhã para o filme de outra pessoa.

A tragédia de Aurora, no Colorado, na qual um atirador massacrou espectadores em uma sessão da meia-noite de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, levou alguns cineastas a fazer um exame de consciência sobre o modo como apresentam a violência na tela. Você também?
Não, porque eu acho que aquele cara era maluco. Ele foi lá para matar um monte de gente porque sabia que haveria um monte de gente lá e que conseguiria um monte de manchetes fazendo aquilo. Não é diferente de um cara entrando em um McDonald’s e atirando nas pessoas na hora do almoço porque sabe que vai haver um monte de gente lá.

Quando as pessoas acusam os filmes por glorificar a violência, o que você diz?
Bom, eu nunca entro nessa discussão porque ninguém tem essa discussão comigo. [Risos.] Eles sabem qual é a minha praia. Eu faço filmes violentos. Gosto de filmes violentos. Já falei sobre como me sinto sobre isso, que não há correlação entre a arte e a vida dessa maneira.

Na época de Cães de Aluguel e Pulp Fiction, você era um outsider alucinado, quebrador de regras, que redefiniu o gênero dos filmes de gângster e deu origem a muitos imitadores. Como se vê hoje?
Bob Dylan nos anos 1970, De Palma, Scorsese, Kubrick e Spielberg nos 1980. Eu gostaria de ser visto como um dos grandes diretores do meu tempo, no auge de sua forma, com o talento na ponta dos dedos, com algo a dizer, algo a provar, simplesmente tentando ser o melhor que consegue.

Não mais um outsider?
É. Essa é uma coisa que, para falar a verdade, é bem legal. Não sou mais um outsider em Hollywood. Conheço um monte de gente. Gosto deles. Eles gostam de mim. Acho que sou um membro bem legal dessa comunidade, como pessoa e até onde meu trabalho e minha contribuição contam. Lá em 1994, acho que todos eles estavam bem impressionados comigo, e isso foi bacana, mas eu me sentia um outsider, um punk rebelde, e só esperava não ferrar com tudo. Ainda faço as coisas do meu jeito, mas também não saí de cena. Ainda me sinto meio que tentando provar que pertenço a este lugar.

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